Qua, 27 de outubro de 2021, 09:13

ADÁGIO
Uma crônica sobre a passagem

Passagem, essa é a condição irrefutável da vida. Paradoxalmente, quando nos fixamos em um espaço, é hora da partida. Talvez, alguém diga que o tempo é suficiente, não sei se concordo, deixo apenas meu protesto; para mim, os momentos são demasiadamente pobres para também não ser eternos, e a memória, é só um flash daquilo que foi. Sempre assistirei perplexo à insaciável fome de Saturno a devorar seu filho.

Há várias formas para o adeus, assim como tantas outras para a permanência. A principal maneira de persistir é na memória e nos corações, as outras, na minha opinião, são apenas narrativas, mesmo salvaguardadas pela Academia. Nenhuma vida, por mais simples que seja, cabe em um livro. Esse partir, que hoje Marlucy e Silaine representam, não simboliza o fechamento das cortinas, ao final de um espetáculo, é apenas o encerramento de um ato, há muitos outros por vir; por mais que o roteiro final seja axiomático, somos livres para improvisar.

Vi Marlucy, pela primeira vez, na minha seleção para Professor substituto, eu estava deitado em um banco localizado em frente a um mural, esperando minha vez para ministrar aula; ela vestia uma calça branca com listras azuis e gargalhava com Sandra; naturalmente, ignoro o tema da conversa, apesar de já ter imaginado várias histórias. Esse episódio tem 9 anos, sem perceber, o Tempo nos devora, paulatinamente.

Com passar dos anos, tivemos várias conversas, inclusive sobre Ele, o Tempo, esse canalha. Uma vez, falamos sobre o Professor de Educação Física que partira, Marlucy me disse: “-A vida é agora, quem diria que ele nos deixaria assim, a vida é agora”. Fico com as palavras de Hans Lassen Martensen: "A eternidade é um mero hoje, é o fruir imediato e lúcido das coisas infinitas."

Poderia dissertar sobre sua importância para escola, mas corro risco de esbarrar na mera formalidade; igualmente, seria pretencioso narrar a trajetória de qualquer professor em tão poucas linhas. Decidi deixar minha memória, do momento desta escrita, guiar essa “crônica”.

Um dia desses, a escola estava vazia, ao sair da Supervisão, encontrei Marlucy, iniciamos uma conversa qualquer, então ela me disse o quanto eu era abençoado; na ocasião, meus olhos ficaram marejados e o meu corpo reagiu com um leve arrepio. Em todos esses anos, foram muitas conversas, em especial, não consigo olvidar os inúmeros debates sobreo ex-aluno João Júlio. Isso impactou minha carreira como professor.

Certamente, cada um dos colegas guarda para si alguma fagulha dela, seja mais ou menos intensa; a vida, independente de imperfeições, tão comuns a nós, demasiadamente humanos, é uma colcha de retalhos.

Não é novidade para o Codap alguém nos deixar, algumas vezes, assistimos em luto, essa cena, assim foi com Teotônio, Zezinho, Laranjeiras e Manuela; mas também celebramos partidas com tons de alegria, porque a vida ainda pulsa lá fora; dessa maneira, dissemos adeus a Odeilson, Silvania, Adjane, Pedroso, Silaine, Lucia, Valdete e Josefa... Não se pode esquecer os que ficaram por um tempo mais curto, como Luana, Yamicela, Rogério, Manu etc. E se, para alguns, esses são nomes desconhecidos, tenham certeza que eles estão guardados no coração de alguém.

Não escrevi um lamento, trata-se de uma homenagem sincera, sem formalidade. Lembrem-se, Marlucy e Silaine, essa passagem, assim como a de outros colegas, extrapolam ao mero profissional, por que somos mais; certamente, de maneira diferente, vocês tocaram na alma de pares e alunos. Silaine, com você, não tive um contato tão efetivo, apesar de ter almoçado em sua casa. Você bem sabe, basta ter comida e bebida para que eu apareça. Relembro também algumas piadas e até mesmo projetos partilhados.

Queridos colegas, não à toa, Janus, figura mitológica, olha para os dois lados, presente e passado. Todos vocês, sem fazer distinção de cargo, construíram e nos legaram a escola a ser deixada para as futuras gerações. É preciso celebrar os vivos, não com a alcunha de herói, mas como homens e mulheres que fizeram da educação uma ferramenta de transformação. Numa época em que é sugerido o aumento do preço de livro e/ou se afirma, com veemência, que a quantidade de professores atrapalha, é preciso celebrar a trajetória dessas pessoas, dedicadas ao espaço escolar. A estrutura de pedra, parte inegável da cultura escolar, pode ruir e tombar, porém ela não sustenta a escola simbólica cultivada em nós, ela nunca será sua anima.

Deo gratias

Ricardo Costa, Aracaju, 16/10/2021


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